domingo, 3 de abril de 2011

O senso comum teórico dos juristas. (Luiz Alberto Warat)

1. O presente volume abrange uma seleção de textos sobre as teorias jurídicas dominantes, especialmente as que fazem referência à problemática da interpretação da lei.
Os ensaios propõem, em contextos diferentes, uma leitura sintomática das representações, noções e crenças que governam a tomada de posição concreta dos juristas em relação ao processo judiciário e a sua produção teórica. Chamar-se é “senso comum teórico” a essa montagem de noções - representações - imagens - saberes, presentes nas diversas práticas jurídicas, lembrando que tal conjunto funciona como um arsenal de ideologias práticas¹. Em outras palavras, essa montagem corresponde a normas que disciplinam ideologicamente o trabalho profissional dos juristas.
Ora, no trabalho jurídico, os diversos profissionais (juízes, advogados, professores, promotores, doutrinadores) são fortemente influenciados pelo “senso comum teórico”. Trata-se de um pano de fundo que condiciona todas as atitudes cotidianas. Sem ele não pode existir prática jurídica, isto é, não se tem como produzir decisões ou significados socialmente legitimáveis.
2. A ideologia em sua materialidade histórica determina um sistema de questões que comandam respostas favorecedoras de sua própria reprodução. É indubitável que a totalidade das respostas ideológicas constitui-se num corpo de conhecimentos. Precisando esta última afirmação, diríamos que o caráter abstrato da materialidade do ideológico aparece sob a forma de uma teoria ou, ainda, que o complexo de discursos mediante os quais se produz abstração da ideologia constitui o que nomeamos “senso comum teórico”.
É preciso reconhecer que o “senso comum teórico” jamais se situa externamente à materialidade ideológica, quer dizer, não dispõe ele de um “nicho” protetor.
Distinguiremos, pois, dois tipos de teorias: as ideológicas (senso comum teórico) e as científicas. As primeiras formam parte do real, as segundas reconstroem esse real social, ampliando-o com a compreensão de seus determinantes e condicionantes.
Aprofundando, agora, nossa reflexão sobre o primeiro tipo de teoria, o “senso comum teórico”, diremos que ele representa um sistema de conhecimentos que organiza os dados da realidade, pretendendo assegurar a reprodução dos valores e práticas predominantes.
Trata-se de um discurso que oferece respostas que apenas aludem ao real e comandadas por interesses que tomam a forma de princípios ou diretrizes. Assim, não é difícil ver que o senso comum teórico apresenta um conjunto de questões onde as respostas já são sobredeterminadas.
Diversamente, as teorias científicas situam os problemas ao nível de um sistema de conceitos aptos a ministrar uma explicação da articulação em que os dados se relacionam. O trabalho científico determina uma mudança de problemática em relação ao senso comum teórico, produzindo transformação deste saber ideológico.
Pois bem, tal corte problemático tomar-se-á fecundo quando tiver por objetivo terminal a transformação da sociedade. O ponto de não retorno entre ambos os tipos de produção teórica é dado por um processo de intervenção no saber ideológico acumulado, para transformá-lo. A cisão epistemológica opera-se pela análise dos modos em que o saber ideológico “normatiza” e “normatiza” sua descrição do real.
Certo é que o corte epistemológico significa apenas o grau zero da produção científica². Não se produz ciência compreendendo tão-somente a ideologia. O discurso teórico e científico se permite ampliar as dimensões do real mostrando seus determinantes e condicionamentos. Mediante a teoria científica constrói-se um objeto de conhecimento que expõe os dados em suas determinações estruturais e conjunturais.
Precisando a distinção entre teorias ideológicas e científicas diríamos que o senso comum teórico (teoria ideológica) baseia-se em valores; seus critérios para a compreensão dos dados são morais. Os critérios do saber científico, afastando-se de um juízo ético sobre os dados, tenta compreendê-los no complexo das relações em que se inserem, nos diferentes momentos de sua realização,  que inclui as relações ideológicas. Vê-se, então, que o senso comum teórico não tem a pretensão de construir um objeto de conhecimento sobre a realidade social, senão normatizá-la e justificá-la por meio de um conhecimento padronizado. Ora, o uso dos dados como álibi consolidador de valores permite detectar uma função mítica para o senso comum. O mito, como veremos adiante, fará remissão ao real como mero suporte material de um processo de reforço dos valores aceitos.
Por outro lado, a teoria científica, em seu esforço para explicar a realidade, deve intervir sobre o ideológico acumulado desmascarando-o é que só desideologizando os dados ideologicamente compreendidos pode-se alcançar o significado histórico dos dados.
Em conseqüência, a produção de um objeto de conhecimento demanda, como primeira preocupação metodológica, determinar em que medida o saber acumulado (as teorias com que pretendemos iniciar a pesquisa do real) representa um conhecimento moral, que reproduz valores mas não os explica. Contudo, o processo de produção de um objeto científico não pode tomar o conhecimento acumulado como um marco automático de referência. Só a partir da compreensão da problemática que esse saber acumulado determina é que poderemos constatar sua força explicação. Insistindo na idéia, diríamos que o trabalho científico produz seu objeto de conhecimento orientado por uma teoria liberada das formas morais da razão. Ora, esta libertação consiste numa mudança de posição do senso comum teórico, isto é, ele passa de teoria  produtora a dado interpretável, converte-se num determinante das relações sociais, numa parte da estrutura. Neste sentido a construção do objeto científico exige desde logo converter o saber ideológico, de instrumento de análise em dado observado.
Note-se, ainda, que o dado sem suas determinações é uma abstração ideológica. Se pretendermos estabelecer um conhecimento científico sobre a realidade social, obviamente, devemos pôr em xeque esta base teórica (crenças, representações, saberes, em última instância, senso comum teórico) que a disciplina.
Lembre-se, finalmente, que a análise crítica dos saberes produzidos pelas diferentes práticas deve ser precedida da leitura sintomática do epistemológico que os informa. Dito de outro modo, na pré-história da produção de um objeto científico, o senso comum teórico encontra-se respaldado por uma filosofia especulativa e espontânea. É tal filosofia espontânea dos cientistas³ que se põe à construção de um objeto científico, pois ela oculta os determinantes do real. Via de regra, tal função de ocultamento produz-se com o aval de cientificidade que aquela filosofia especulativa imprime ao senso comum teórico. A filosofia, como ideologia, postula, pois, o caráter científico do senso comum teórico. Daí que o empirismo lógico - o expoente mais sofisticado da metodologia ideológica da ciência - considera que um campo do saber satisfaz as exigências de objetividade científica quando consegue organizar o senso comum no interior de um discurso rigoroso.
Vê-se, assim, que a conseqüência da estratégia anteriormente referida é reassegurar a função ideológica do senso comum, deslocando a problemática específica da ciência ao plano secundário (mas privilegiado no empirismo) do controle semiótico e da correspondência da teoria com a realidade.
Já, então, podemos perceber que o empirismo lógico sugere uma opção metodológica na qual o dado encontra isoladamente significação, quer dizer, por sua mera manifestação no real. Ali, o trabalho científico seria reduzido à descrição coerente da manifestação dos dados do real. Para o empirismo lógico não interessa a ampliação dos dados com seus determinantes, ou seja, os dados não possuem história; a ciência, nesta perspectiva, produz seu objeto aproximando-o por sucessivas retificações a uma manifestação sensível e indubitável.
3. Retornando, agora, ao campo do direito, observamos que:
a) As teorias jurídicas existentes devem ser caracterizadas como senso comum teórico.
Em momento algum, as teorias sobre o objeto “direito” deixam de cumprir um papel ideológico. O saber jurídico emana da necessidade de justificar a ordem jurídica, e não de explicá-la. Parece-nos, pois, que o senso comum teórico no direito manifesta-se através de duas instâncias diferenciadas: 1º) uma filosofia especulativa que oculta o papel social do direito; 2º) um trabalho técnico de sistematização das normas positivas com o qual, indiretamente, complementa-se a mensagem ideológica das filosofias especulativas dos juristas 4.
Por sua vez, estas duas instâncias plasmam um sistema de idéias e crenças produtoras de uma visão do mundo específica para o direito.
Em conseqüência do trabalho ideológico aludido, o senso comum teórico se erige num código dominante  dos significados jurídicos. O senso comum teórico cumpre, assim, diversos papéis: prescritivo (pode ser visto com parte do próprio direito positivo), político, decisório e, inclusive, retórico.
b) O trabalho científico sobre o direito como objeto social deve começar pela leitura sintomática do senso comum teórico.
Parece-nos, entretanto, que este trabalho está só parcialmente feito, e de modo absolutamente incipiente. Neste sentido, a pesquisa necessária deve situar-se na história do saber jurídico acumulado, tratando de explicitar os determinantes que esse saber oculta. As pretensões desta leitura sintomática devem basicamente orientar-se em duas direções: da filosofia jurídica e da dogmática jurídica.
De outro lado, as duas vias referidas podem ajudar-nos complementarmente na compreensão dos aspectos hermenêuticos e retóricos do saber ideológico do direito.
4) Os ensaios deste livro foram reunidos utilizando como critério a relação com o tema destas reflexões introdutórias. Contudo, têm como último objetivo sua integração numa pesquisa sobre o modo de produção do convencimento judicial 5.
Foram os trabalhos redigidos em momentos diferentes e atendendo a objetivos teóricos bem heterogêneos. Mas tudo isto não invalida a possibilidade de pensá-los como um todo orgânico. A análise do conhecimento acumulado pelos juristas, apesar das possíveis diferenças de nível e objetivos, resulta sempre convergente para a explicitação de seus determinantes.
Nos primeiros três ensaios procuro mostrar o tratamento emprestado ao problema hermenêutico pela teoria geral do direito. Tento mostrar um diagrama dos sentidos emprestados à noção da interpretação da lei, seguido de uma leitura sintomática das crenças teóricas que se foram forjando na história do conhecimento a partir da codificação. Analiso, pois, as diferentes Escolas do pensamento jurídico mostrando como repercutiram suas teorizações no plano das decisões, fornecendo para as mesmas critérios interpretativos (os chamados métodos de interpretação). É que as regras aparentemente científica são apenas manifestação teórica da ideologia; são o senso comum teórico vertido em critérios. Os métodos de interpretação constituem o terceiro ensaio.
Incorpora-se depois ao texto um trabalho que baseado em concepções da filosofia  da linguagem ordinária, mostra o valor prescritivo e persuasivo - ideologicamente negados - das definições do judiciário.
Afinal, todos os trabalhos nos foram aproximando à problemática que o livro anuncia como um objeto de conhecimento a construir: o modo de produção do convencimento no campo do direito. E nossos primeiros passos nesta direção correspondem aos ensaios da II PARTE onde se discute a criação do efeito de convencimento no interior dos raciocínios não-demonstrativos e se propõe os conceitos de mito e da condição retórica do sentido como elemento explicativo deste efeito.
Poder-se-á sentir um notável desnível entre as duas partes do trabalho. Isto se deve à própria natureza do conteúdo de cada uma. Com efeito, na primeira agrupamos elementos familiares a todo profissional do direito, enquanto que a segunda está orientada a uma avaliação crítica da primeira em função de um instrumental alheio à práxis e à reflexão diária dos jurista.
 
* (Extraído de Mitos e Teorias na Interpretação da Lei, Porto Alegre, Ed. Síntese Ltda, SID).
** Professor do Curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina; Prof. Da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires; Membro do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB.
 
Notas
1. Cf. ALTHUSSER, Louis. Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientista, Lisboa, Editorial Presença, 1976.
2. Sobre a noção de corte epistemológico ver BACHELARD, Gaston, Epistemologia, Org. Dominique Lecourt, Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
3. Cf. ALTHUSSER, op. cit.
4. Ver PASARA, Luís - Preservación al Curso de Metodologia de la Investigación Jurídica. Lima, 1977.
5. A pesquisa sobre o modo de produção do convencimento judicial é um trabalho que me encontro realizando juntamente com a professora Rosa Maria Cardoso da Cunha.
 
(postado por: http://members.fortunecity.com/danilonl/luiz_alberto_warat.html)

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